Sabe aquele sabor de infância que vem a mente em uma tarde qualquer, quando nos pegamos recordando as brincadeiras de criança, regadas às receitas da vovó, feitas com muito carinho. Assim, é quando pensamos no mungunzá ou simplesmente canjica.
Porém, nem toda receita tem o aspecto da memória afetiva, há muita história por trás de cada colherada, além das muitas curiosidades que percorrem de norte a sul do país. E tudo começa pelo milho!
Breve história da transformação do milho
Tudo tem um começo e a do milho foi há 7 mil anos com os maias. Para eles, um grão com ares de adoração, essencial para a sociedade, que foi levado à Europa com a invasão espanhola e ganhou adeptos. Demoro um pouco para cair no gosto popular, era destinado à alimentação dos animais ou para classes mais pobres.
Aqui, ele já existia na sociedade indígena como um dos alimentos que compunham os seus hábitos alimentares, mas só foi incorporado à cadeia alimentar pela necessidade de encher a barriga de quem veio ganhar a vida em terras brasileiras.
Curiosidade: Apesar de ser muito importante para a nossa culinária, o milho tem origem mexicana e uma cara diferente da que a gente está acostumado a ver por aí. É um cereal que precisa ser semeado para nascer, assim como a mão do homem para planta-lo mundo a fora. Ele foi sendo adotado e levado por diversos povos, brotando em cada lugar, tornando-se o mediador de fenômenos culturais, e grande figura das festas folclóricas.
Quando Cabral pisou em solo brasileiro, disse que tudo que se plantava, vingava. De fato, tanta exuberância tropical pôde tê-lo confundido um pouco, pois nem tudo que trouxeram do Velho Continente funcionou por aqui. O jeito foi ter que se adaptar as terras além-mar.
No Brasil colônia, a alimentação era considerada pobre, visto que era proibido o plantio de qualquer cultura que não fosse a cana-de-açúcar. Tiveram que improvisar e copiar de quem vivia por ali há algum tempo. Dos índios, surgiu a apreciação ao milho – e o começo de um dos alimentos mais básicos da alimentação brasileira, ao passo que foi misturado a outros modos de preparo e agregando sabor ao caldeirão multicultural que forma o Brasil.
O milho cumpri essa função, cultivado principalmente no sertão e colhido em meados de junho e julho, coincidindo com as festas de São João. O campo é parte importante da vida de qualquer sociedade e os alimentos que nele é produzido, desempenham um fator supremo e decisivo ao paladar.
Conquistando um lugar à mesa
Os alimentos são essências para a sobrevivência humana, porém também se cercam de relevância para caracterização de um povo. Reunir-se para o preparo de alguma comida é um dos alicerces de qualquer sociedade, e o alimento faz parte do ato de compartilhar a essência de um grupo de pessoas que se identificam através de ritos e costumes. Ele é levado a ultrapassar fronteiras, a descrever um determinado lugar, a ser presente na vidas das pessoas. Comer é um ato de sociabilização que ajudou a sociedade a evoluir e buscar maneiras de construir diversos utensílios, tal como uma identidade cultural e uma própria linguagem. E não seria diferente com as diferenças linguísticas: mungunzá ou canjica. Cada uma cumpri a sua missão.
Curiosidade: Luiz Gonzaga, o rei do Baião, trouxe em suas canções um pouco dessa importância do alimento para o conjunto social. O milho, como um alimento básico para a cultura brasileira, sobretudo a nordestina, esteve presente em suas letras: “ Na minha terra/ dá de tudo que planta/ O Brasil dá tanta coisa/ Dona Chiquinha/ Bote o milho pra pilar/ Pro angu, pra canjiquinha/Pro xerém, pro mungunzá.”
Como na vida nada se cria, tampouco se perde, mas tudo se transforma, temos do milho, a operação fundamental da multiplicação. São 600 derivados do milho, sendo 500 destinados à alimentação humana. Há de concordar, seria impossível não encontrá-lo nos pratos com gostinho brasileiro. Aliás, para ser Brasil, tem que misturar. Desta forma, um cereal americano, consumido pelos indígenas, carregou marcas da África e de Portugal em seu modo de preparo até as nossas mesas. Mais Brasil impossível.
E já que o papo é sobre a transformação do milho, temos um prato típico que causa um pouco de dúvidas: mungunzá ou canjica. Uma iguaria muito conhecida, que ao mesmo tempo não é. Um alimento que ganha nomes diferentes e até mesmo preparos distintos em cada parte do Brasil. Incorpora à sua essência uma história que vai além do que nossa vã filosofia pode supor – ainda bem.
Mungunzá ou canjica – tanto faz!
No nordeste é mungunzá. Em São Paulo, canjica ou curau. Em Minas Gerais pode ser chamada de piruruca. Já no Rio de Janeiro é conhecida como canjiquinha. Lá no centro-oeste pode ser encontrada como chá-de-burro. A sua versatilidade não fica somente no nome, está presente também na escolha do milho, podendo ser preparado com o tipo branco como amarelo. E, como gostamos de ter opções, pode ser servido salgado ou doce. Algumas versões usam leite de coco e açúcar, já em outras, torna-se uma espécie de feijoada. Uma variedade incrível que só poderia ser fruto do solo brasileiro, contraditório e cheio de opostos.
Nos pratos nordestinos, passeiam entre salgada e doce. Em alguns cantos, um preparo de milho amarelo, com carne de gado ou carneiro, com ossos para dar um gosto mais forte e sustentar as longas horas da roça, principalmente pelos escravos que cortavam cana. De certo, é recomendado comer no almoço ou até às 17 horas, levando em consideração que é um prato reforçado e energético. Todo cuidado é pouco para não ter uma congestão!
Quando preparado na versão doce, é utilizado o milho branco, leite de coco ou de vaca e açúcar. Para muitos, principalmente os quais têm influências das religiões de matriz africana, é um presente aos orixás. Todas as primeiras sextas-feiras do mês é dia de preparar o mungunzá doce em homenagem a Oxalá. Um ato importante de ligação e compartilhamento do alimento, pois todos do terreiro dividem o axé e celebram entre si essa iguaria.
Em dia de Sexta-feira Santa, para acompanhar o peixe, a tradição católica de celebração da Páscoa abre-alas para a canjica.
A viagem pela origem da palavra
A palavra mungunzá é de origem africana, especificamente do quimbundo mu’kunza, que significa milho cozido. Já canjica tem outra raiz etimológica, oriunda da palavra kandjica, também da língua quimbundo. Outras versões, supõem a sua origem quicongo, com significado de papa de milho grosso cozido, ambas faladas em Angola.
O Brasil é grande e cheio de contradições, mas muitas são deliciosas como o mungunzá! E você já provou?